Sugiro ouvir durante leitura o que te traz o mais singelo sentimento de esperança.
Ontem completou 52 anos do assassinato de Carlos Marighella, gerrilheiro brasileiro, líder da ALN e um dos símbolos mais genuínos da resistência contra a ditadura brasileira. Na última segunda, eu fui ao cinema assistir o filme que traz o seu nome, dirigido pelo ator, produtor e cantor Wagner Moura. Um longa que, segundo o próprio Moura, não homenageia só o personagem principal, não sendo também uma tentativa de santificá-lo, sendo sim, uma homenagem a todos que lutaram, dedicaram e perderam suas vidas resistindo a um sistema opressor desde sempre: Canudos, Revolta dos Malês, Panteras Negras, Marielle Silva, Maria Amélia Teles (Amelinha) e tantos outros companheiros que foram pres@s, espancad@s, estuprad@s, assassinad@s, enfim, desumanizados sob as mais sanguinolentas torturas por discordarem com um regime que se formava para atender os desejos e desmandos de um grupo seleto que hoje é celebrado pelo atual governo federal brasileiro.
Mesmo tendo começado a produção por volta de 2016/2017, parece que o filme Marighella foi feito por encomenda para esse novo momento de trevas que estamos passando. Cada dia um absurdo, um estupro da nossa inteligência quanto povo, um soco na boca do estômago causada pelos crimes que se revelam - principalmente cometidos pela família Bolsonaro -, mas que seguem impunes. Revisitar ou (para muitos) conhecer Marighella através do cinema pode ser um respiro de motivação, esperança e vontade de continuar a lutar contra tudo que nos oprime, machuca e mata - mesmo que por pouco mais de duas horas.

Eu lembro que quando comecei a estudar a história do Brasil contemporânea, ainda na escola, eu me deparei com a ditadura brasileira. Que sorte que tive professores que não deturpavam ou romantizavam esse período para nós, jovens de classe média soteropolitana que tinha à época a figura de Antônio Carlos Magalhães para exemplificar o político autoritário, poderoso que tudo podia, tudo fazia. Foi bem no ano de 2001 que jovens em Salvador foram às ruas da capital baiana protestar pedindo a cassação de ACM e José Roberto Arruda por causa da violação do sigilo do painel eletrônico do Senado cometida por ambos. O chefe do clã da família Magalhães botou a polícia para descer o cassete no bando de estudantes desarmados, ou melhor, armados com cartazes e faixas. Um comportamento nada surpreendente do ex-governador da Bahia que sempre esteve alinhado com a direita reacionária brasileira, terminando a carreira política no PFL (hoje Democratas), mas anteriormente, sendo membro da Aliança Renovadora Nacional, partido de sustentação do regime militar.
Lembro da minha revolta quando soube do acontecido, da covardia. A polícia militar baiana, mesmo não podendo, invadiu o campus do Canela da UFBA (região próxima a casa de ACM na época) para acuar os alunos que alí se refugiavam. Bombas, tiros de borracha eram arremessados contra a passeata estudantil. Diante da apatia dos meus colegas ao saber do caso, fiz um discurso inflamado no auditório do colégio Mendel…estava tão nervosa que mal saia a voz (nunca poderia imaginar que esse nervoso se multiplicaria por 10 com esse governo federal tantos anos depois). Naquele mesmo dia, meu professor de história, Sodré, passou um trabalho onde cada equipe apresentaria sobre um momento da história política do Brasil e eu peguei os anos da Ditadura, 1964 a 1985. Tava com sangue no olho!!!!
Por ser um livro paradidático, os horrores que se passaram nos porões da ditadura não eram revelados, mas toda as articulações para que esse sistema fosse instaurado estava lá. Os conchavos políticos, a manipulação social que insistia que o golpe (ainda é dito até hoje que não existiu, tanto em 64 quanto em 2016) seria temporário até que a ameaça comunista se afastasse do país, enfim, toda a lia pela primeira vez sobre toda articulação para o surgimento desse que foi o pior momento político desse país.
Censura, prisões arbitrárias, assassinatos, desaparecimentos, invasões, fechamentos de estabelecimentos (como jornais, centro culturais), corrupção em alta, interferência norte-americana no desenvolvimento sócio-cultural do país. Além de tudo isso, um regime autoritário, fascista tirava das pessoas um dos seus maiores bens, talvez, o mais precioso, a liberdade.
Só abrindo um parêntese bem rápido.
Durante minha passagem como repórter e apresentadora da TV Câmara SP, eu pude acompanhar diversas audiências públicas sobre o Relatório da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog (2013/2014).
Uma honra poder acompanhar de perto todo o esse trabalho árduo e doloroso para apurar os crimes políticos e violações aos direitos humanos ocorridos na capital paulista na ditadura. Ouvi depoimentos que jamais saíram da lembrança. Quanto horror os presos políticos e simplesmente cidadãos acusados de subversão viveram. Foi em um desses encontros que conheci Amelinha Teles, jornalista e ex-militante do Partido Comunista. Uma sobrevivente das maiores atrocidades cometidas contra uma ser humano e uma das importantes vozes de denúncia desses crimes .
#DITADURANUNCAMAIS
Carlos Marighella e tantos outros companheiros de luta se reuniram para combater esses canalhas disfarçados de homens e mulheres detentores e defensores da moral e dos bons costumes (isso te lembra alguma coisa?). A luta armada foi um dos últimos recursos usados por Marighella para esse combate. Homem preto, nordestino, iniciado na política desde a Era Vargas e já perseguido politicamente desde então, o ex-deputado e fundador do PCB (embrião do PCdoB), era um poeta, um homem admirado intelectualmente por outros grandes intelectuais como Sartre e Jean-Luc Godard (o qual chegou a financiar a ALN). Pai, esposo, um dos homens que mais amou esse país e que acabou sendo transformado pela “corja de assassinos, covardes, estupradores e ladrões" (Legião Urbana - Perfeição) no inimigo número um do Brasil.
Acho que você deveria ver os dois vídeos abaixo sobre a vida de Carlos Marighella produzidos pelo jornalista, historiados e escrito Eduardo Bueno.
A falta de tempo para ter medo, movia este revolucionário que admirava o povo vietcongues que venceram o imperialismo norte-americano no Vietnã. Os jovens revolucionários o seguiram já com mais de 50 anos e ele avisava: a luta vai ser difícil, mas vamos vencer.
O filme de Wagner Moura vem com um elenco brilhante, comovente e com resquícios dessa época anti-democrática. A censura ao longa vinda dos órgãos federais, as ameaças, os ataques criminosos - como o que aconteceu nessa semana em um assentamento MST no interior da Bahia, onde carros e barracas foram queimados e perfurados por balas -, revelam que estamos flertando com tudo que queremos deixar no passado, porém jamais esquecer. Contudo, não é à toa que pessoas manipuladas mais uma vez pelos podres poderes vão às ruas pedir a volta da Ditadura.
É tão contraditório (para não dizer patético) e perigoso tudo isso. Elas não entendem que o que permite que cometam esse crime frente a Constituição Brasileira é a própria Democracia que elas pedem o fim?
#DITADURANUNCAMAIS
Na minha sessão também aconteceu: ao final da exibição, gritos de ordem contra esse desgoverno, contra a volta da ditadura, lembranças e cobranças pelas mortes de outr@s Marighellas dos nossos tempos. Eu por exemplo, me emocionei bastante e botei pra fora todos os bichos presos em mim desde as eleições de 2018. A confiança em dias melhores que víamos nas falas de Marighellas me contagiou a acreditar que também sairemos dessa neo-treva que estamos passando. Me sinto mais confiante, algo que havia perdido fazia tempo. Infelizmente, não tive vontade de cantar o hino nacional, hoje um símbolo muito averso ao que acredito.Uma pena por que ser patriota aqui no Brasil se tornou ser babaca, reaça, apoiador dos golpes de 64 e 2016…por enquanto, ainda não dá.
Ah! Falar da parte técnica do filme é chover no molhado. Que surpresa maravilhosa a direção de Wagner Moura, sua estreia.Por ser um filme de época, o desafio se torna ainda maior, mas tudo foi equilibrado e sensivelmente bem feito. Direção de arte, fotografia. As cenas nos levam para dentro do filme - taí, acho que essa aproximação proposital do público através dos movimentos de câmera nos dão esse pertencimento àquela história (que de certa forma devemos nos apropriar dessa luta mesmo). Parabéns Adrian Teijido e demais da equipe técnica.
O elenco encabeçado por Seu Jorge soube conduzir o roteiro híbrido também assinado por Moura e Felipe Braga, transitando por sequências que revelam muita ação, um certo humor (acreditem!), amor e, claro, o fino trato documental. A própria escolha por Seu Jorge já foi um ato político, trazendo à tona o preconceito velado da nossa sociedade que, em parte, criticou o fato do tom de pele dele ser mais escuro do que a do revolucionário.
Assistir Marighella nos cinema é um ato de resistência. Esgotar os ingressos como aconteceu na pré-estreia é responder a todas as ações que tentaram impedir a realização e exibição dessa produção baseada na biografia Mário Magalhães.