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“Um abraço Negro”
, do Cortejo Afro.
As minhas primeiras lembranças de vida são do carnaval. Nascida em 83 e moradora do centro de Salvador (especificamente entre a Praça da Piedade e o Relógio de São Pedro), passei meus primeiros carnavais vendo na Av. Sete de Setembro o início da Axé Music com os desfiles da segunda geração dos blocos carnavalescos que nem imaginavam a potência que se tornariam.
Lembro um ano que saí fantasiada de bailarina, usando o batom verde Tieta que mudava de cor na boca e sapatilhas douradas que minha mãe comprou na banca de D. Ivone, uma vendedora ambulante que usava os filhos como modelos das fantasias que vendia. Entre as crianças vestidas de bailarina, índio, baiana, estava sua filha mais velha: Carlinha, que anos depois o Brasil chamaria de Carla Peres.
Eu amava o carnaval. Aprendia todas as músicas e coreografias. Nessa fase dos anos 80, Olodum, Gerônimo, Luiz Caldas, Banda Reflexus e Cheiro de Amor (com Márcia Freire) eram os meus preferidos. Chiclete quando chegava perto do meu prédio, todo mundo descia correndo para ver o Cacik Jonne passar com seu cocar e sua guitarra incrível.
Os anos foram passando. Eu crescendo de um lado e o carnaval de Salvador se agigantando e engolindo os que não conseguiam acompanhar esse exponencial crescimento. A grande maioria dos que não foram prestigiados com “bum” dos inícios dos anos 90 trazido pelo sucesso de Daniela Mercury com o “Canto da Cidade” era formada, justamente, por quem fazia a música preta nas comunidades e terreiros de candomblé: os blocos afro, de afoxé, de índio, percussivos. Essa música de rua de ancestralidade negra recebeu nos estúdios de gravação outros elementos musicais e mais tarde passou a ser chamada de Axé Music como tentativa de defini-la por ser tão única.
Os maiores blocos engoliram os pequenos em vários sentidos. Tecnicamente, os trios se tornaram dinossauros no tamanho e na potência, esmagando sonoramente os carros de som dos pequenos blocos. Isso é brilhantemente apresentado na música “Eu Sou Negão”, de Gerônimo. Daí já podemos perceber a falta de respeito daqueles que estavam chegando com aqueles que já estavam naquelas ruas do centro há diversos carnavais.
Além desse desrespeito, quantos compositores dos guetos tinham suas músicas gravadas pelas “grandes estrelas” do Axé Music e poucos viam seus nomes revelados na mídia?! Daniela Mercury teve uma grande importância na desconstrução desse outro exemplo de invisibilidade da cultura negra no carnaval de Salvador. Fazia questão de gravar compositores dos blocos afro, em especial, os que participavam dos festivais internos promovidos por eles. Do Ilê Aiyê vieram muitos sucessos.
É até absurdo escrever isso: “invisibilidade da cultura negra no carnaval de Salvador” porque é uma festa nascida da cultura de matriz africana. Por mais que reneguem, Salvador é essencialmente negra e, infelizmente, vemos na maior manifestação de seu povo o enbranquecimento estrutural da festa.
Outro dia estava vendo uma entrevista do Vovô do Ilê (Presidente do bloco Afro Ilê Aiyê) para a TVE Bahia em alguma transmissão do Carnaval, na qual ele dizia que Salvador era uma cidade racista onde ninguém se assumia como tal. Essa afirmação vinha depois de um desabafo sobre a falta de investimento e patrocínio que os blocos afro, de afoxé, enfim, os originados nas comunidades de matriz africana. Mais uma forma persistente de invisibiliza-los há anos.
Sem recursos financeiros fica praticamente impossível esses blocos saírem nos carnavais, situação que impacta negativamente aquelas comunidades de várias formas. Além da questão financeira marcada pela não geração de renda, não há representatividade na festa criada por eles e seus ancestrais. Não há a manutenção de um sentimento de pertencimento ou de orgulho, restando apenas o inconformismo, revolta e o desejo de uma dia fazer parte dignamente daqueles dias de folia que para muita gente representa de sentir vivo, integrante de um todo, nem que seja pelo ao menos no carnaval.
Não haver carnaval dois anos seguidos para essas pessoas significa muito mais do que não ter bloco na rua, suor e cerveja. Ir para o Carnaval de Salvador significa resistir ao preconceito velado da maior cidade negra fora da África. São dias em que os 360 dias de racismo, violência, exclusão ficam camuflados pela fantasia daqueles dias.
Depois que fui trabalhar na TVE Bahia eu pude acompanhar de perto um pouco da dificuldade do carnaval desses blocos de matriz africana. Quando muitos deles não conseguiam colocar o bloco na rua por falta de patrocínio, os que chegavam à Avenida acabavam se apresentando para pouquíssimas pessoas e quase nenhuma imprensa, porque em algum momento o circuito Osmar (Campo Grande/Avenida) passou a ser desprestigiado de quinta a sábado.
Nesse ponto podemos dizer que a invisibilidade desses blocos se tornou institucionalizada. Se não fossem alguns projetos, como o Carnaval Ouro Negro, do Governo do Estado da Bahia, talvez muitas dessas entidades carnavalescas já não existissem há muitos carnavais.
Mas eles resistem ano após ano, se apresentando para poucas pessoas e sem o interesse da maioria da imprensa (com exceção da TVE Bahia que nunca abandou a transmissão desses blocos como forma de ajudar nessa resistência). Nossa me dá um ódio quando vejo essas emissoras de outros estados afirmarem que são “as emissoras do Carnaval”. Não sabem nada, não conhecem nada…Só mostram as “estrelas” decadentes do Axé Music.
A força da resistência gira entre os blocos e sua pequena plateia que se sente representada, celebrada e unida por um sentimento que não consegue ser descrito porque ele surge o bater na percussão, na voz estridente e com pouca resolução do cantor, da dança do balé afro. É lindo de ser ver um bloco de matriz africana ou indígena passar. Por onde anda o Apaches do Tororó e o Commanche?
Pensando com o olhar empresarial, como uma marca vai investir em um bloco que desfila em um local onde não tem mídia para mostrar sua marca, não tem público suficiente para promover-se? Não esqueçamos do fator do preconceito racial, um grande problema para os patrocínios chegarem até os blocos afro e de afoxé , maioria entre os menos privilegiados.
Ficar sem carnaval para essa comunidade do carnaval significa ficar, mais uma vez, sem voz, mesmo que essa seja baixinha, bem tímida.
Por volta de 1995 e 1998, os clubes sociais da capital abrigavam os shows dos blocos de carnaval - Cheiro, Eva, Camaleão. Nessas festas namorávamos, bebíamos, fumávamos Gudang Garam, fazíamos todas as coreografias do momento, mas não tínhamos noção (pelo menos eu não tinha) do que aquelas festas representavam socialmente. Essa segregação dentro do carnaval já vinha de longas datas e chegava até a minha geração escancaradamente.
Com os ingressos caríssimos e os blocos cada vez mais preconceituosos, só fazia parte dos shows e tinham acesso aos abadás “as pessoas bonitas”. Era dessa forma que algumas diretorias dos blocos carnavalescos se referiam às pessoas que eles queriam ver em seus ambientes. Resumindo, para ser considerado assim você não poderia, especialmente, ser negro e morador da periferia. Eu lembro que fui comissária de um desses blocos e a ordem era separar as fichas de inscrição por cor de pele e bairro.
Um absurdo que também chegou às festas de largo, como a Lavagem do Bonfim. Esse formato segregador de alegria disfarçado de preconceito é até hoje visto só que mais velado. Taí a festa carnavalesca que aconteceu no Clube Espanhol no sábado passado. Só quem tinha de 200 a 400 reais para o ingresso pode pular com Durval Lelis, tendo o direito de ter pelo menos um dia de carnaval. Olha aí a exclusão social dentro do carnaval mesmo não tendo carnaval.
Eu já me afastei do carnaval de Salvador há muitos anos por não concordar com esse modelo segregador e de apropriação cultural. Quando eu perceber que a festa está voltando para os seus donos - os blocos de matriz africana e indígena - talvez eu coloque a minha fantasia e saia atrás do trio de Armandinho, Dodô e Osmar.
Mas enquanto isso não acontece, eu fico de longe vendo esse sistema escroto de exploração da cultura negra se manter ano após ano e agora sendo realizado também por grupos de outros estados que viram no Carnaval de Salvador mais uma forma de ganhar dinheiro, como é o caso do Sertanejo Universitário e do Funk Carioca.